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Francine Machado de Mendonça

Chega a ser desaforento[1] considerar uma mudança na pandemia como boa, mas peço licença para partilhar parte da minha pesquisa-ação e explicar as razões desse olhar “afrontoso”.

Há anos já estudava e multiplicava Teatro do Oprimido, a metodologia de Augusto Boal, fazia minhas trilhas de aprendizagem entre comunidades originárias e mestres populares e partilhava aprendizados, filmes e vídeos com os estudantes. Então, de certa forma mantive comigo a pesquisadora que me tornei num passado remoto como jornalista.

Partilho este percurso para marcar as mudanças pelo caminho, já que podemos aprender nesta trajetória e como artistas-educadoras, partilhar estas vivências nas turmas em que atuamos.

Numa linha do tempo imaginária A.I. (antes do isolamento) comecei uma pós em Teatro do Oprimido e Processos Grupais na Psicologia Social. Algo inimaginável em estudo virtual para professores e profissionais da assistência social e saúde mental que já aplicavam Boal em seus trabalhos.

Seis meses depois – já no período D.I. (depois do isolamento) veio o coronga e nos vimos jogando, discutindo, lendo, ouvindo convidados e pesquisando em lives na mesma especialização.

Esse processo “pandêmico” de estudo me ajudou produzir textos, inserir fotos e perguntas das técnicas desta metodologia em roteiros de aprendizagem integrados para Educação de Jovens e Adultos (EJA). Sem brecha para discutir se isso era ou não teatro, analiso que foi o teatro educação possível num contexto de estudantes sem equipamentos bons e com os serviços da prefeitura de Santo André dando pau em pouco tempo.

Já na pesquisa paralela em cultura popular, encontrei uma pedagogia para chamar de minha: a griô, com a qual aprendi a tecer rede de pesca, andar em canoa, a simbolizar renascimento com barro e no coletivo, comer mamão verde no almoço e pastel de coração de bananeira à noite, na Chapada Diamantina, do “período da pedra lascada”: A.I[2].

Na pandemia isso enriqueceu os vídeos, áudios e fotos cantando, contando histórias, documentando arte pelas paredes e janelas e provocando meus jovens e adultos a não perder a beleza e o sensível de vista.

Na sanha de prestar contas pedagógicas destas trocas, documentei fragmentos dos aprendizados mútuos no Instagram @mostra_afetiva_da_eja e nos podcasts mais antigos Descansa Francine e Franzoca Brandão[3].

Com estas produções busquei também não perder o vínculo com estudantes em situação de insegurança alimentar, precarização do trabalho, violência familiar e impactos na saúde. Meu corpo sentia profundamente essas narrativas deles, fossem digitadas ou gravadas e talvez por ser atravessada por elas, foi um período de quebrar a cabeça em estudo live para ajudá-los e não me sentir sozinha, mas também de um auto-cuidado intenso, já que “roubei de volta”[4] o tempo perdido em trânsito.

Talvez pela intensidade desses movimentos terapêutico-pedagógico as expectativa e saudades do ensino presencial se acumularam. Há quase três bimestres voltamos ao chão de escola e alguns avanços podem ser documentados: depois de anos pedindo numa das escolas conquistamos uma sala multiuso sem móveis (nesta os estudantes engajaram mais em jogos teatrais mais lúdicos[5], mas não aprofundaram este processo) e pela primeira vez evoluímos dos jogos de Boal ao improviso e Teatro Fórum sobre o abuso de uma aprendiz pelo chefe, que a impedia de sair na hora para estudar, alegando “você já é faxineira, vai estudar para que”?[6]

O trabalho sobre o impacto da perda dos direitos trabalhistas entre diaristas com turmas da EMEIEF Darcy Ribeiro e CPFP (Centro Público de Formação Profissional) João Amazonas acontece desde 2018. Os educandos que cansados ou pouco abertos às aulas cênica são direcionados à formação de platéia: fotografam e filmam os jogos e improvisos.

Revendo este material posteriormente, em busca da melhora na mediação de Boal com eles[7] vi que continuar na mesma escola me fez presenciar as turmas evoluírem do jogo Floresta de Sons[8] à Viagem Imaginária[9] na mesma dinâmica.

Em experimentações informais como educomunicadora, descobri o Tiktok como um app de edição fácil. Salvando e organizando vídeos em meus arquivos, revi gravações de 2019 com as quais fui pré-selecionada ao prêmio Arte na Escola. Sonhando que o trabalho de formiguinha da educação pública fundamental fique menos na coxia e conquiste algum holofote, me inscrevi de novo neste reconhecimento – agora já com incrementos acadêmicos e conquistas D.I[10].

Passei longos períodos do feriado prolongados repensando esta pesquisa-ação cênica/cultural para sistematizar o estudo mão na massa e enviar ao prêmio.

Uma coisa é certa: com mais tempo no escritório do que os planos de descanso previram, meus ombros e pescoço gritam. Além da minha sensibilidade de artista estar mexida com as narrativas áridas dos estudantes na véspera desta folga prolongada. Neste respiro entre produção e planejamento, traço fuga para o samba com meu companheiro, que sempre alerta quando faço hora extra nos momentos livres. E este vacilo não posso negar que eu dê.
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[1] Sim, esta pesquisadora sensível inventa palavras. Foi mal ABNT!

[2] Antes do Isolamento

[3] Ambos podem ser ouvidos no Spotify. No Franzoca Brandão porém, os últimos podcasts já são rascunhos de produtos finais para o mestrado em artes da cena na ESCH.

[4] Minha professora Cristiane Rogério, da pós na Arte de Contar Histórias, dizia que o tempo de leitura é um tempo roubado das nossas obrigações. Penso que o de se cuidar, descansar, criar... também são.

[5] Pesquisados, adaptados e mediados com apoio do baralho Jogos Teatrais, de Nado Grimberb, Editora Matrix. Obrigado café livraria charmoso de Ilhabela (SP)!

[6] Infelizmente Isabel não viu a apresentação final deste trabalho. Sabiam que a legislação apóia o trabalhador que apresenta matrícula no emprego para continuar os estudos? Esta pesquisa-ação é reiteradamente dedicada à estudante.

[7] Curinga: mistura de diretor/ professor/ ator/ fomentador entre a cena de Teatro do Oprimido, a discussão com o público e o envolvimento da plateia no improviso das reações que ela propõe e encena no lugar do ator (ou atriz) que fez o oprimido na primeira apresentação para os participantes.

[8] Floresta de Sons: o grupo se divide em duplas: um parceiro será guiado e o outro o guia. Os guias emitem sons variados (suaves), enquanto seus guiados escutam com atenção de olhos fechados. Então, os guiados protegem seus cotovelos e seguem seus guias. Os guiados devem seguir os sons até que o guia pare. Quando o guia pára de emitir o som, o guiado também pára. O guia é responsável pela segurança do parceiro (guiado) e deve parar de fazer seu som se o seu guiado estiver prestes a esbarrar em outro ou a bater em um objeto. O guia deve mudar constantemente de posição, mas sempre olhando seu guiado. Se o guiado for atento, se seguir com facilidade, o guia há de manter-se o mais longe possível, tendo sua voz quase inaudível. O guiado deve se concentrar somente no som de seu guia, mesmo quando a seu lado há vários outros. O exercício tem como objetivo despertar e estimular a função seletiva da audição. Fonte http://teatrofazendoarte.blogspot.com/

[9] Viagem imaginária: Em duplas. O cego deve ser conduzido pelo seu guia através de uma série de obstáculos reais ou imaginários, como se os dois estivessem em uma floresta, em um supermercado, na Lua, no deserto do Saara ou outro cenário real ou imaginário que o guia tenha em mente. Como em todos os exercícios desta natureza, falar é proibido; toda informação deve ser passada através do contato físico e dos sons. Sempre que possível, o guia deve fazer os mesmos movimentos do cego, ao imaginar sua própria história. Fonte: http://somostodosartistasboal.blogspot.com/

[10] Depois do Isolamento

SOBRE FRANCINE

Francine Machado de Mendonça é arte educadora na Educação de Jovens e Adultos (EJA) de Santo André, faz narrações dramatizadas, projetos culturais, escreve livros infantojuvenis e dá formações. Com os estudantes no ABC trabalha Pedagogia Griô (decolonial e estética) e Teatro do Oprimido (T.O.). Fez projetos culturais e foi oficineira literária/ cênica em Sescs, centros culturais, feiras literárias, pelo Programa de Iniciação Artística da Secretara de Cultura de São Paulo e Fundação Criança de São Bernardo. Ano passado, fez o projeto Narrativas Itinerantes pela Aldir Blanc de São Caetano, com vídeo aulas de contação de histórias e T.O., além de apresentar a multiplicação que fez do T.O. na Fundação das Artes e grupo digital de estudo livre em artes Quinta Parede na 9ª Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido Universitário. Especialista na arte de contar histórias e em Teatro do Oprimido e Processos Grupais na Psicologia Sociai, publicou os livros Os Meninos que Queriam Rodar, A Pirueta da Bailarina Fofinha e Guardião da Cidade, sobre bullying/ homofobia, gordofobia, ecocídio e cultura indígena.

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